Renato Rios | Cruzeiros | 04 mai - 23 jun 2023

Renato Rios | “Cruzeiros” | 04 mai - 23 jun 2023

Marco Antônio Vieira

Cruzeiros ou como fazer ver a cor segundo Renato Rios  

Cruzeiros é a um só tempo acontecimento e sinalização. Essa pequena mostra da pintura de Renato Rios se dá não apenas como experiência que se encena e se materializa e na qual se inscreve quem a observa nos limites do espaço expositivo, a partir dos efeitos e das ressonâncias de como se compreende o fenômeno pictórico nas proposições que aqui se encerram, mas igualmente estabelece o momento atual das investigações poéticas e morfológicas (relativas às formas e à linguagem adotadas) de seu autor, cujas relações e tensões com a História e Teoria da Arte e de como sua pintura as materializa não se podem negligenciar.

Em Rios, motivos que se poderiam associar à pintura modernista e a seus desdobramentos suprematistas (Kasimir Malevitch) aparentam enamorar-se do diálogo com o sublime, que se aciona pelo uso da cor no expressionismo abstrato, sobretudo em Mark Rothko. A modulação tonal da cor, sua estruturação quase musical, como bem a definiu Rodrigo Naves (2013), ao falar da obra de Paulo Pasta, também tem seu lugar na concepção pictórica de Renato Rios.  Ajusta-se a cor. Afina-se a cor. Toca-se a cor. A cor encapsula a potência de uma temporalidade.

Compreender a possível ou antes detectável genealogia do pictórico aqui serve antes à mostração de como o artista brasiliense a reinventa e a atualiza a partir de como a retoricidade de sua pintura ( a maneira como se articulam cor, figura e composição) se relaciona com o universo de correspondências da vida de seu autor, sua história como sujeito de um mundo de saberes incorporados, saberes encarnados, em que o que se sabe não se objetifica fria e calculadamente mas antes se vive como parte mesma de sua própria carne, como se ilumina nos textos em torno da pintura de Maurice Merleau-Ponty (2002 & 2004).

Que se tenha nomeado essa mostra Cruzeiros é tudo menos acidental: a polissemia que se instala no significante eleito para dar título ao que aqui se vê e se articula como proposição poética contém o segredo de uma formulação em que se dá a ver a paisagem ou antes a própria cena em que se desenrolam as questões que animam, intrigam e convocam Rios a continuar a pintar. Daí que “cruzeiros” seja aqui estruturante e possa, assim como nos lembra Thierry De Duve em Nominalisme Pictural (1984), em relação aos títulos concedidos a certas obras, desempenhar um papel definidor naquilo que concerne ao sentido da exposição.

Cruzeiros carrega em seu bojo semântico as estrelas, a sintaxe cruciforme (a forma da cruz), e a ideia mesmo de cruzamento, as encruzilhadas.  As estrelas, recorrentes na pintura de Rios, dão-nos prova de como seu autor as entende como elementos de uma espécie de alfabeto iconográfico. No desenho das estrelas se condensa a pulsação, que é signo do dinamismo e da circulação incessante e multidirecional. A encruzilhada é aqui o encontro e o entroncamento de forças que atuam simultâneas sobre o que se entende por “presente”. O presente é nada senão um efeito momentâneo. E nessa mostra, a temporalidade se alimenta do passado da pintura e do modo como Renato Rios o atualiza e se exercita para o tornar seu, acenando para o futuro de sua poética, de seus processos, de seu pensamento e materialidade.  É essa temporalidade fugidia, a passagem mesma entretempos, que Cruzeiros teimosamente exercita-se em capturar. `

O arranjo cruciforme encerra em seus domínios a estrutura de uma comunicação pulsante e dinâmica. Assim, associar o cruciforme à estagnação, que sugere a morte em muitas ocasiões da narrativa cristã, é equívoco. Na morfologia cruciforme não apenas se dispõem elementos de uma composição mas na verdade se revela a incessante vocação para a mutação. Nesta mostra de Rios, o cruciforme é submetido a uma geometrização a um só tempo sensível e rigorosa. Este esquema morfológico aparenta comandar o encadeamento das obras que integram Cruzeiros e não apenas se apresenta explícito em algumas telas, como faz as vezes de elo narrativo, naquilo que a pintura de Renato Rios encerra como narratividade formal.

O cruciforme encerra uma estrutura em tudo temporal, em que seu dinamismo constitutivo autoriza que os sentidos se desdobrem não apenas a partir da unicidade sintática das obras mas antes de como os motivos morfológicos instalados nas obras individuais se comuniquem com aqueles presentes nas demais obras expostas, de modo a forjar a significação, que só se completa a partir da totalidade da mostra. Assim, em Cruzeiros, como em outros momentos privilegiados da produção de Rios, com distintos graus de explicitude, a significação de cada obra se ilumina a partir do diálogo com as outras obras expostas, ao mesmo tempo que a obra individualizada contribui para a significação estrutural implicada na exposição. 

Em Cruzeiros, os arranjos concebidos por Rios deixam essa estrutura destinada ao câmbio e, particularmente, à modulação no tempo explícita, ao posicionar lado a lado, composições em que as cores sinalizam inequivocamente, para quem as observa, que elas se modulam dinâmicas e mutantes como se fossem uma e várias telas a um só tempo.

É preciso imaginar o cruciforme como um território cuja demarcação induz ao trânsito permanente de conteúdos cuja mudança no esquema “em cruz” implica a lógica de um funcionamento em que os sentidos são ao mesmo tempo reconhecíveis e instáveis. A compreensão profunda de Rios dessa lógica esquemática o levou a propor-nos, na posição de quem observa, como se articula seu pensamento em Cruzeiros.

Há, nos domínios pictóricos que inspiram e se demarcam aqui, o que leríamos como uma apropriação de determinados princípios do pensamento de Piet Mondrian em Broadway Boogie-Woogie, tela iniciada em 1942 e finalizada em 1943, em que se atinge o efeito de movimento, dinâmica e circulação a partir do modo como que se materializa e compartimentaliza a cor na tela.

Em que pesem as devidas distinções que a temporalidade assume na tela de Mondrian e em Cruzeiros, o esquema composicional de Broaddway Boogie-Woogie fornece-nos um modelo analítico que inspira nossa leitura do trabalho de Rios nesta exposição. Em Rios, há dilatação da duração da experiência do tempo, uma deriva contemplativa invocada pela experiência que se vive da cor, enquanto que o efeito temporal, na obra de Mondrian, atravessa-se pela velocidade quase que feérica.

O que nos mobiliza, contudo,  é o modo como o  pensamento pictórico da tela modernista aparenta governar os mecanismos de significação estrutural que se leem como índices temporais em Cruzeiros, como se fôssemos impelidos a enxergar, no esquema morfológico que estrutura o modo como se comunicam as distintas telas aqui reunidas,  uma obra ou antes como o instantâneo atual da produção de Rios, em relação a como seus elementos constitutivos se articulam nos limites das obras em situação expositiva mas também em relação ao passado e ao futuro de sua produção pictórica e a como o artista se aproxima ao mesmo tempo em que ressignifica a pintura que o inspira.   

A temporalidade instalada no cruciforme (seus rastros pretéritos e sinalizações futuras) se confirma quando se sabe que a figura que abraça o galo que aqui se vê surge no ano de 2008, resultante das incursões de Rios, então estudante da graduação em artes visuais da Universidade de Brasília, em seus mergulhos nos livros que diligentemente lhe serviam à maneira de um monge copista, e que, em Cruzeiros, marca o (re)encontro que se atualiza para o artista da maneira como entende a tensão entre o figurativo e o abstrato em sua pintura.

É o modo particular como Renato Rios encena essa tensão ou antes diálogo pictórico em suas obras e exposições que empresta singularidade a sua assinatura como um artista que pensa a pintura a partir de sua história e de como este pensamento se atualiza sob a forma de respostas que engendram infinitas perguntas. Como nos ensina Gérard Wacjman (1998), na arte, são as respostas, sob forma de obras, que nos propõem as perguntas.

Assim, curiosamente, Rios aparenta corroborar em larga medida e mesmo propor desdobramentos insuspeitados para a tese de Walter Friedlaender em De David a Delacroix (2001), em que a tensão entre desenho e cor, convertida em um binarismo largamente excludente na Teoria da Arte Ocidental, calcada na lógica do “ou...ou”, que se estende e contamina amplamente a teorização em torno da pintura no século XX, adquire em Rios um valor antes complementar e lógico, cujo entendimento se dá a partir do modo como os momentos figurativos e abstratos se modulam em Rios a partir da coloração.  

Lê-se, portanto, a coexistência do figurativo (devedor do desenho) e do abstrato (comumente associado às modulações da cor), Em Cruzeiros, como “figurativo e abstrato”. Rios entende que esse antagonismo, tradicionalmente constitutivo para a ontologia da pintura ocidental, não se justifica uma vez que se compreenda de um modo outro a longa história da pintura na cultura. Ademais, os motivos figurativos nesta mostra, assim como em vários outros momentos da produção de Renato Rios, exercem uma outra função, igualmente determinante para a fabricação do universo poético de seu autor, em que sua espiritualidade e religiosidade se infiltram nas veias na pele na carne de sua pintura. Uma pintura que em larga medida se vive como uma espécie de sacerdócio.

A cor que surge qual música no sonho. Cor alquímica e onírica. Coloração que rouba metonímias e tinge metáforas. Cor alada. Sequestra-se, como ave de rapina, a cor que se viu no sonho e, portanto, o cruciforme aqui permite trânsitos, passagens, que fronteiras se cruzem e se mesclem. Pequenas frestas entre mundos distintos se manifestam nas cores das pinturas e no modo como se compartimentam na composição pictórica.

 Cores diversas assinalam mundos outros, lugares outros, espaços outros que a cor a um só tempo separa e comunica. Se cores se entreveem é porque a forma da cruz encerra o tempo e seus transportes. Daí, verem-se essas quase portas, sob a forma de telas. Elas nos trouxeram aqui e já anunciam o lugar outro, por vir.

O entendimento do artista da pintura como acontecimento e fenômeno se dá por meio da cor. É a cor, em Rios, que contém o enigma de um desejo que nunca se poderá esgotar ou satisfazer sob pena de que seu desvelamento implique sua irrelevância. É até mesmo a cor que nos entrega o sentido de seu desenho.

A cor, em Rios, “produz presença”, como nos instrui Hans Gumbrecht (2010), e instaura as condições de uma experiência estética, em que a lógica do sentido usual cede lugar às sensações.

A cor é um convite, a cor é segredo e código. A cor é o desafio irrecusável. E é por isso que em Cruzeiros, é a cor que nos arrebata, fisga e captura. Somos a tal ponto tomados pela invasão desta cor, uma cor que de tal modo inunda que, em vez mesmo de a pensarmos no plural, a substantivamos como entidade de significação – “a cor”-, como que a poder viver o gozo pictórico da cor, como a vive em sua carne, na nossa agora, seu autor.

Esta “cor”, a “cor da verdade” talvez se confunda mesmo, para Renato Rios, com a “verdade da cor”. Aqui, neste horizonte de auroras e de alvoreceres de antes e de depois, em sucessão infinita, se vislumbra ofuscante e inapreensível a “cor”, a qual encarna as dimensões do ético e do estético na poética de Rios. Esta “cor” só se a pode perceber a partir de suas epifanias. Daí que sua pluralidade nada seja senão a tentativa de pensá-la como momentos cromáticos que nunca se poderão ver reunidos. Seu entendimento como totalidade é pura intuição e a obra é uma oferenda. É sacrifício. Sacrifica-se, pois que a obra precisa ser dádiva.

Sentir “a cor”. Ouvir “a cor”. Viver “a cor”. Uma alucinação sensorial e sinestésica faz emergir o sonho da “cor”. Ao vê-la, cegamo-nos.

A pintura de Rios é o esforço tradutório de fazer ver esta “cor” que cega.

Quando o galo cantar, teremos visto “a cor”, ainda que nunca a possamos compreender.

 

Referências:

DE DUVE, Thierry. Nominalisme pictural. Paris: Minuit, 1984.

FRIEDLAENDER, Walter. De David a Delacroix. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

GUMBRECHT, Hans. Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto & PUC Rio, 2010.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

______________________________. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

NAVES, Rodrigo. A espessura do presente. 10/01/2013.

Disponível em:  http://paulopasta.com.br/portu/mobile_depo2.asp?cod_link=9&flg_Lingua=1&cod_Depoimento=42.

Acesso em 15/04/2023.

WACJMAN, Gérard. L’objet du siècle. Paris: Verdier, 1998.

Serviço

Exposição de Arte

Título: Cruzeiros

Artista: Renato Rios

Abertura: 4 de maio de 2023 (quinta-feira)

Horário: das 18h às 21h

Local: Mul.ti.plo Espaço Arte

Funcionamento da galeria: de segunda a sexta, das 11h às 18h (sábados, sob agendamento)

End: Rua Dias Ferreira, 417/206 - Leblon – Rio de Janeiro

Tel: + 55 21 2294 8284 | +55 21 20420523 (Whatsapp)

Entrada franca