'10 anos | “Como na primeira hora”| 12 dez 2020 – 07 abr 2021


Exposição “Como na primeira hora” | 12 dez - 26 fev

Tamanho não é documento por Paulo Sergio Duarte

 Sabemos, todos, o quanto é importante um espaço generoso para abrigar exposições de arte contemporânea. Aqui, no Rio de Janeiro, lembro de imediato de três importantes galerias que tiveram seu projeto arquitetônico especialmente desenvolvido para receber essa nova escala de trabalhos; não se trata de espaços adaptados a partir de residências ou lojas antes existentes. Mas o que o casal Stella da Silva Ramos, designer, e Maneco Müller, advogado, vêm provando ao longo dos últimos dez anos é que, como diz o ditado popular, “tamanho não é documento”. Maneco vem se dedicando ao mercado de arte há cerca de catorze anos; Stella, depois de trinta anos de atuar no campo do design gráfico, juntou-se ao marido na abertura da Mul.ti.plo, situada, no Leblon, acima da Livraria Argumento, portanto um endereço que já se tornara referência cultural no bairro e na cidade.

Com suas duas “pequenas” salas, se comparadas a outros espaços, vem apresentando exposições que se afirmam no calendário da cidade. Isso se deve ao bom olho dos dois parceiros e uma contínua elevada qualidade da programação. Quando inaugurou, em dezembro de 2010, a Mul.ti.plo apresentou os mesmos três artistas que agora comemoram sua primeira década de funcionamento: Célia Euvaldo, Eduardo Sued e Maria Carmen Perlingeiro, dois pintores e uma escultora. A inauguração foi um sucesso em todos os sentidos. Galeria lotada e venda de todas as obras expostas e mais aquisições fora da mostra. Ao contrário do que o nome pode indicar, a galeria sempre combina exposições em que ao lado de múltiplos, existem obras únicas. Às vezes só as últimas.

Foram muitas as exposições que me marcaram desde 2010: por exemplo, em 2012, a de Waltercio Caldas; no mesmo ano, a apresentação do Chelpa Ferro no espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico; em 2013, a de Antonio Dias, quando fui convidado a escrever o texto do catálogo; em 2014, a formidável apresentação de obras de Pedro Cabrita Reis, um dos mais importantes artistas contemporâneos, que a partir deste ano de 2020, passa a assinar somente Cabrita; em 2015, José Pedro Croft, com exposições simultâneas no Paço Imperial e na galeria; em 2019, Carlos Vergara e Roberto Magalhães, amigos desde os anos 1960, apresentaram obras recentes, e ainda no ano passado, um ponto culminante, com a apresentação de Múltiplos singulares de Cildo Meirelles, que há mais de vinte anos não realizava uma exposição individual no Rio de Janeiro. Nesses dez anos, praticamente todos os anos apresentaram uma exposição de Eduardo Sued, além de incursões por importantes nomes estrangeiros, entre os quais destaco o argentino Juan Melé (1923-2012), um dos precursores da arte concreta no continente.

Não contentes, subiram a serra e abriram, há três anos, no centro do Vale das Videiras, a Mul.ti.plo – Serra, em espaço bem mais amplo. Ali são realizadas outras tantas exposições inesquecíveis. Um mural de Célia Euvaldo, mostras de Daisy Xavier, Fernanda Junqueira, Rodrigo Andrade. Ainda no início de 2020, abriram a coletiva De vários Modos, com obras de Angelo Venosa, Carlos Vergara, David Almeida, Iole de Freitas, Marcos Chaves, Marina Saleme, Rodrigo Andrade, Teresa Salgado, Thiago Rocha Pitta e Walter Carvalho.

Logo em seguida, abriram uma exposição pelo centenário de Lygia Clark que teve um momento privilegiado, no dia 14 de março, na Fazenda Cachoeira. Carol Aguiar apresentou o monólogo Respire comigo, baseado nos diários e correspondência da artista, que já havia sido apresentado na om art, no Jóquei. Agora, com um magnífico cenário projetado por Alessandra Clark e Nuno Sousa, e iluminação do mestre Walter Carvalho. Tive o prazer de ser convidado para falar sobre a obra de Lygia e a interpretação de Carol. Foi minha última viagem desde o início da pandemia. O Vale das Videiras ganhou o cenário que permanecerá de modo permanente na Fazenda Cachoeira.

Esse resumo dá uma ideia da trajetória de dez anos da galeria que demonstrou que “tamanho não é documento”. Espero estar aqui para comemorar os vinte anos.

Rio de Janeiro, 4 de dezembro de 2020.

 

 Três artistas por Paulo Sergio Duarte

Já nos habituamos, infelizmente, a esse mundo 24/7, o tal das 24 horas, sete dias por semana – a “equação” sobre a existência despertada, sem dormir, no mundo contemporâneo formulada por Jonathan Crary –, ou experimentamos a “Sociedade do Cansaço” exposta por Byung-Chul Han. Aqueles que podem, mas somente eles, durante a pandemia se dedicam ao “Exílio do Mundo” apresentado por Pedro Duarte.[1] Nessa situação, visitar a exposição em que a galeria Mul.ti.plo Espaço Arte, comemora seus dez anos, pode ser um momento de saudável exceção, nesse acúmulo de anomalias, ao possibilitar o encontro com obras de três artistas contemporâneos: Célia Euvaldo, Maria-Carmen Perlingeiro e Eduardo Sued.

Célia Euvaldo

As pinturas de Célia Euvaldo há muito tempo são poderosas. Suas virtudes se evidenciaram, durante anos, nas diversas escalas, desde as monumentais até as mais modestas, na exploração exclusiva do preto e do branco, quase sempre sobre a tela apenas tratada em gesso, muitas vezes presentes, anunciam seu contrário: ausências. O segredo talvez esteja no método da decisão: olha o vazio da tela e de golpe em golpe preenche-o em boa parte deixando vazios diante do receptor, a forma final deriva de uma ação, não de um projeto. Com a reintrodução das cores, que havia abandonado há algumas décadas, a lição do preto e do branco é mantida, sempre presente, junto com áreas vazias. Mas surge um novo elemento. Não se trata da simples oposição cromática, entre o preto, o branco e a nova cor introduzida. Há o jogo das diferentes densidades. É um novo contraste que se acrescenta. Sempre o óleo e os pincéis largos, trinchas, como já houve até o rodo. O óleo, preto ou branco, está em elevada densidade, a tinta pura delimita uma área e deixa de modo decisivo o traço do gesto; espessas, essas áreas se opõem à outra área de cor, em tinta diluída, às vezes quase transparente como se fosse uma aguada. Esse é o embate que se soma à diferença entre as cores. É um acréscimo na experiência da pintura. Além do prazer, nos ensina que as cores podem se opor não só pela lei dos contrastes simultâneos, mas pelas diferentes densidades. Com todo peso e espessura do branco ou do preto no encontro à leveza do lilás, amarelo, cinza, laranja, grená, vão bem além da espessura, lançam-se discretamente no espaço.

Maria-Carmen Perlingeiro

Em 1998, por ocasião da exposição Formas Transitivas, sob minha curadoria, no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, em São Paulo, pude escrever “Essa fragilidade do alabastro, quando confrontada com as pedras mais resistentes, parece ser o preço pago pela incorporação da luz de que é capaz no encontro raro de opacidade e transparência. Alguém, possivelmente, já disse que nas formas de Maria-Carmen a arte se comporta como estranhos animais domésticos, queremos acariciá-los de tão familiares e atrativos. Mas também temos certeza: nunca os vimos antes.” Agora, são apresentados os Objetos Flutuantes, resultados de um trabalho que já desenvolve há mais de quinze anos. Suspensos no ar, se assemelham a harmonias complexas de uma música densa numa partitura silenciosa que escutamos com os olhos. Mais espessos, os Flutuantes oferecem mais opacidade que Gotas e Unhas, todas no mesmo material, e nos obrigam a um olhar levantado, um pouco para cima, às vezes um pouco para baixo, como as notas na pauta. A fonte maior do alabastro é a cidade de Volterra, na província de Pisa, na região Toscana. Em uma passagem do filme de Visconti, Vaghe Stelle de l’Orsa, 1965, um personagem vê a cidade como uma metáfora da aristocracia: com toda sua beleza, está sendo devorada por baixo e acabará se arruinando. Estende-se a metáfora ao alabastro que transporta consigo um traço de nobreza e delicadeza potencializado pela obra poética de Maria-Carmen e sobreviverão como peças muito raras na arte contemporânea.

Eduardo Sued

Há cinquenta anos, quando rompeu com a linguagem picassiana muito expressionista, Eduardo Sued mantém um vetor construtivo coerente de desenvolvimento de sua pintura em torno do qual ocorrem surpreendentes transformações. Das grandes lições sobre a cor, em pinturas de rara grande escala para a época, nas quais as áreas se opunham não deixando ver as discretas pinceladas em grandes superfícies monocromáticas, nos surpreendeu, no início dos anos 1990, com o surgimento das pinceladas expressivas, que sem abdicar de oposições cromáticas inéditas, nasciam o preto e o negro. O artista os diferencia: “o negro te empurra para fora da tela e o preto te puxa para dentro”. Ou seria o contrário? Não satisfeito, introduz as grandes telas prateadas, salpicadas de pequenas pinceladas de diferentes cores, às quais se acrescentam tramas geométricas de diferentes tonalidades de prata que podem ir do quase branco ao cinza chumbo. Logo experimenta o acréscimo de volumes regulares, sarrafos de madeira pintada se superpõem e criam uma interferência volumétrica que ainda não havia sido vista em seu trabalho. Aos 95 anos, completados neste ano de 2020, Eduardo Sued mantém uma presença assídua no seu ateliê, deslocando-se três vezes por semana de sua residência em Ipanema para Jacarepaguá. Além de prosseguir com suas surpreendentes e arrojadas pesquisas de cor, realiza novas investigações, como a pequena tela que Maneco Müller me mostrou na galeria antes da montagem. Maneco me explica, com pertinência, sobre o cinza quase prateado: Sued aplica uma trama mondrianesca que será parcialmente apagada por acréscimos dos cinzas. Não é surpreendente procurar transformações com essa idade? De qualquer forma, não existe nenhum pintor que explorou melhor os contrastes entre o azul e o vermelho intensos e uma superfície dourada. Que prossiga ainda por muitos anos.

[1] A) Crary, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. Tradução: Joaquim Toledo Jr. São Paulo: Ubu, 2016. B) Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução: Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017. C) Duarte, Pedro. A pandemia e o exílio do mundo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.   

 

SERVIÇO

A galeria estará aberta das 11h às 18h, de segunda a sexta-feira e sábado com horário marcado.

Agende o horário de sua conveniência pelo Whatsapp 21. 2042-0523.

"Como na primeira hora"
12 de dezembro 2020 até 26 de fevereiro 2021
Mul.ti.plo Espaço Arte
Rua Dias Ferreira, 417, sala 206  - Leblon – Rio de Janeiro
Tel.: +55 21 2259-1952