Célia Euvaldo | Pinturas | 09 mar - 28 abr 2023

Célia Euvaldo | “Pinturas” | 09 mar - 28 abr 2023

Otavio Leonidio

Por mais de duas décadas, Célia Euvaldo se restringiu a empregar em suas telas e papéis as tintas preta e branca. Compreensivelmente, à sua prática artística foram associados, recorrentemente, predicados como austeridade, ascetismo, disciplina, contenção, severidade; a sua seria, em síntese, uma pintura feita de “recursos propositadamente escassos” e meios e modos “estritos”.1

Visto nessa chave, o advento de outras cores nas pinturas mais recentes de Euvaldo tenderia a ser visto como uma espécie de abertura: a superação dos protocolos e da disciplina formal que a artista voluntariamente se impôs, e com os quais construiu não apenas uma sólida carreira, mas uma marca (no melhor sentido da palavra).

Não creio, obviamente, que seja incorreto ler esses novos trabalhos, nos quais a cor é o dado novo e, para muita gente, surpreendente, nessa chave. Minha própria interação com eles, nas diversas ocasiões em que os encontrei, no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Vale das Videiras, foi de outra ordem, contudo. Neles, não vi tanto a exploração – porventura libertadora - de novas possibilidades formais, mas a aposta numa relação renovada com o público – em especial, com seu próprio público: o público que o branco e o preto pacientemente cativaram ao longo de mais de vinte anos de existência.

O dado crucial aqui não é, nesse sentido, o fato de as novas cores terem –surpreendentemente? finalmente? – adentrado um espaço pictórico que, por longos anos, lhes fora vedado. É, antes, realizar ali algo que nem o branco nem o preto (aqueles corpos monocromáticos de intensíssima presença matérica, sob os quais a superfície do suporte desaparecia, e ao lado dos quais os trechos não pintados só podiam mesmo ser vistos, como diz Euvaldo, como o espaço “onde a pintura não vai”) fizeram antes delas – a saber, estabelecer uma relação nova e, creio, literalmente desconcertante com a superfície da tela.

O que foi deixado para trás nessa passagem? Um dos princípios básicos da força (e em certo sentido, da eficácia) estética das telas monocromáticas, nas quais o contraste entre pintado e não pintado resultava, por força da aproximação das pinturas, adensado pela presença irresoluta da tinta-matéria, aqui sulcada pela vassoura, ali plasmada pelo rodo.

Como Euvaldo afirma, aquelas telas não são feitas (e o aproximar-se delas confirmava isto) de duas cores – o preto e o branco –, mas de “duas matérias”: de uma parte, a matéria espessa da tinta óleo, no limite esculpida pelos instrumentos da pintora, de outra, a matéria – física e estatutariamente – ancilar da superfície da tela, deixada intocada. Donde, justamente, a ideia de “corpos”: pretos ou brancos, corpos em todo caso matéricos; corpos que param ali onde a pintura – o que significa, a pintora – não foi.

O que ocorre nas novas pinturas é, me parece, de outra ordem, e comporta um razoável grau de ambiguidade. Aqui também o jogo entre proximidade e distância (jogo, não custa lembrar, ancestral na história da pintura) se constitui em dispositivo central. Porém, diferentemente do que ocorre com as telas monocromáticas, a experiência da aproximação não é de adensamento e, no limite, de confirmação, de algo que, a depender da qualidade da luz do ambiente em que os trabalhos estão expostos, o olho já tinha antecipado – a saber, que tanto quanto o preto, aquele branco é pura matéria e, portanto, igualmente “corpo”.

O que ocorre nas novas pinturas, alternativamente, é antes um jogo de desfazimento de antecipações e intuições, jogo no qual a cor – digo esta cor específica, predominantemente vibrante e francamente diluída – exerce um papel crucial.

De fato, o protagonismo que, à primeira vista, a cor – a sedução que a cor exerce, potencializada pela ausência de qualquer possibilidade de Gestalt – tende a exercer aos olhos de um observador mais ou menos distante dos quadros é, aqui, literalmente, enganoso. Não porque não sejamos capazes, como no caso das telas monocromáticas, de perceber à distância a densidade matérica do branco. Mas há algo que só a proximidade revela: a distinção entre os corpos dessas pinturas não se restringe nem ao contraste de cor, nem à distinção categórica entre o pintado e o não pintado; entre a presença irresoluta dos corpos matéricos e o espaço onde a pintura não vai. De fato, uma vez próximos da superfície da tela, percebemos que a relação da tinta com a tela é, no caso dos campos dotados dessas novas cores, de outra natureza: uma vez que a tinta é, aqui, diluída, esses outros “corpos” nunca alcançam total autonomia em relação à superfície da tela: ao contrário: misturam-se a ela, transformando-a e sendo por ela transformados.

Afirmar que os campos não pintados da tela são, em ambas as ocorrências, os espaços “onde a pintura não vai” me parece insuficiente, nesse sentido. Porque o que branco matérico e cor diluída realizam aqui são coisas muito distintas: ao passo que o corpo-branco se sobrepõe, enfática e resolutamente, sobre a superfície da tela (que assim assume claramente a tradicional função de suporte), as novas cores mantêm com a tela uma relação oscilante, ora de autonomia (sobretudo, como vimos, quando vista à distância), ora de simbiose. Disso decorre também algo que me parece importante: o espaço onde a pintura não vai acaba se tornando, ele próprio, um espaço de estatuto duplo: a um só tempo suporte de corpos dotados de maior ou menor independência e superfície na qual mútuas implicações e transformações podem e de fato ocorrem; onde não apenas a tinta mas os próprios corpos podem se afirmar ou diluir. Repare-se que não se trata aqui de um mero jogo de fixação e dissolução da Gestalt, algo que em todo caso jamais ocorre com as pinturas de Euvaldo. Trata-se, antes, de uma oscilação que jamais se resolve, da ordem portanto da indecidibilidade. Como se a realidade destas telas de algum modo existisse num espaço sempre precário, elusivo, indecidível.

Não quero sugerir com isso que não haja ambiguidade e incerteza nas telas brancas e nas telas pretas. Há, obviamente. Mas, em larga medida, elas sempre contaram com a ausência de outras cores. Como se a ausência de outras cores (se se quiser, sua presença fantasmática), fosse também uma condição de possibilidade do realizar-se daquelas pinturas e de sua força estética. A cor, afinal de contas, não estava ali para perturbar ou distrair algo que, de longe, o olho já intuíra: preto e branco eram, em todo caso, matéria densa e espessa aposta sobre uma superfície que, desde que a pintura é pintura, foi sempre isso: suporte. (Como disse certa vez Frank Stella, provocativamente, o grande desafio da pintura é fazer com a que a tinta fique tão boa sobre a tela quanto é boa dentro da lata).

Nesse sentido, a cor – ou mais propriamente, essa cor específica, a cor que, diluída, se funde e confunde com a superfície rugosa da tela – veio perturbar e sobretudo complexificar não propriamente uma operação formal, mas a essencial relação pintura-público. Como se Euvaldo passasse agora a exigir mais do seu público – ou quem sabe, confiar mais nele, em sua capacidade de adentrar o mundo, ou mundos, que sua pintura anuncia e propõe. Um mundo feito também de corpos oscilantes, elusivos, indecidíveis.

Radica aí, me parece, a força das pinturas recentes de Célia Euvaldo: se a tela é o mundo de ação da pintora – e a pintura, o registro ou traço de suas ações pretéritas –, é também, ou pode ser, o espaço de um público em transformação. O público que, cativado por uma prática artística consolidada, se abre, assim como a pintora se abre, não apenas para o novo, mas para o indecidível. O público que, em seu afastar-se e aproximar-se dos corpos indecidíveis pintados e não pintados por Célia Euvaldo, se abre para a dúvida, a incerteza, a precariedade.

São Paulo – Rio de Janeiro, fevereiro de 2023.

1 - Ronaldo Brito, “O incerto preto no branco” in Célia Euvaldo. Rio de Janeiro/São Paulo: Galeria de Arte Ipanema/Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 2009.

Serviço

Exposição de Arte

Título: Pinturas

Artista: Célia Euvaldo

Abertura: 9 de março de 2023 (quinta-feira)

Horário: das 18h às 21h

Local: Mul.ti.plo Espaço Arte

Funcionamento da galeria: de segunda a sexta, das 11h às 18h (sábados, sob agendamento)

End: Rua Dias Ferreira, 417/206 - Leblon – Rio de Janeiro

Tel: + 55 21 2294 8284 | +55 21 20420523 (Whatsapp)

Entrada franca